Interview with Zundap (Portugal) - www.zundap.com Entrevista a Rory McLeod **Z - Para si, a música folk tem sido um modo de vida (considerando todas as viagens que fez, o modo como lida com as pessoas, aquilo que canta). Pensa que as pessoas que não estejam relacionadas com esse universo o consideram naif?** R – Para ser sincero, nunca considerei que a música folk fosse, para mim, um modo de vida. Por outro lado, não sei se naif será a palavra correcta. Acho que as pessoas não me consideram naif. Talvez elas até pensem isso, mas pelo menos não mo dizem directamente! Não estou preocupado com aquilo que possam pensar acerca de mim. Em Austin, no Texas, diziam que eu era um vagabundo. Nunca me vi dessa forma, mas também não nos podemos ver sempre tal como os outros nos vêem... Nessa altura, eu dormia vãos de escadas e em carros velhos.Uma vez uma pessoa veio ter comigo e disse-me que adorava ser como eu... Pareço ser “livre” quando faço alguma coisa de que gosto... Sempre pensei que esse fosse um segredo da vida, encontrar algo que se gosta de fazer e tentar ficar tão bom nessa actividade que alguém acabe por nos pagar para nós a desenvolvermos. Evidentemente que a minha vida não é assim tão fácil ou tão cheia de glamour. Aquela pessoa que queria ser “como” eu devia simplesmente estar infeliz com o trabalho que tinha de fazer para sobreviver, ou talvez até estivesse desempregada e procurasse um sentido para a sua vida. Uma missão ou qualquer coisa do género, não sei. Somos todos ignorantes; simplesmente cada um de nós ignora coisas diferentes.A minha atitude não é sempre a mesma. Posso ser uma mistura de idealista e cínico. Já actuei como advogado do diabo e já actuei ou fingi actuar de uma forma ignorante ou naif para sacar a verdade a alguém, ou para descobrir qual era ou podia ser o motivo desse alguém. Sobrevivi até agora por fazer aquilo que faço. Já estive na rua, sem dinheiro, a cantar entre bandidos. Já cantei para pessoas com dinheiro – e assegurei-me de que me pagariam. Já cantei de graça à volta de fogueiras.A certa altura das minhas viagens tive de regressar para descobrir onde era, afinal, o meu lar: tive de descobrir se estava a ir a algum sítio ou se andava simplesmente a fugir. Quis viver novamente numa comunidade. Talvez tenha experimentado uma espécie de “choque cultural” ao regressar ao meu país após anos de viagens e, depois de ter passado a falar noutra língua, dar-me conta de que me tinha esquecido de partes da minha própria língua. Por vezes, não conseguia articular imediatamente os meus pensamentos e sentia-me como se tivesse estado a viver num mundo diferente, distante das telenovelas e dos mass media com que todos tinham convivido. As pessoas falavam de personagens de séries da televisão, personagens essas das quais eu nunca tinha ouvido falar, que eu não conhecia... A princípio, eu pensava que essas personagens eram pessoas reais... Foi uma coisa bizarra: as pessoas falavam muito acerca de acontecimentos e histórias da televisão e eu dei-me conta de que a minha realidade e os meus temas de conversa eram muito diferentes. Como eu já não via televisão há alguns anos, de início tive algumas dificuldades de relacionamento. Só sabia falar acerca de coisas que me tinham acontecido a mim próprio, de pessoas que tinha conhecido e amigos que tinha feito, de gente que tinha conhecido nas minhas viagens por outros países, daquilo que tinha visto ao vivo, daquilo em que tinha trabalhado. Assim sendo, as minhas experiências eram bem diferentes das experiências das pessoas que eu encontrei quando regressei. Dei-me conta de que as minhas prioridades também eram bem diferentes. Acabei por optar por não falar acerca das minhas aventuras e da vida excitante que tinha tido na medida em que podia parecer que eu me estava a gabar das minhas histórias “doidas” às pessoas da Londres anónima, sobrepovoada, “egocêntrica” e “da moda”. Eu desejava encaixar-me, misturar-me, e não parecer diferente ou exótico, não dar vistas. Mesmo assim, dava nas vistas. Até comecei a vestir roupas mais escuras, abandonando os tons mais coloridos. Não queria parecer um papagaio emproado; queria era ouvir muito.Talvez eu visse as coisas de forma diferente, talvez visse o meu país e a minha cultura de forma diferente após ter estado tanto tempo fora. Mais tarde, contudo, apercebi-me de que havia outros que reagiam a este mundo da mesma forma que eu. Embora não me sentisse parte integrante de nenhum grupo ou “tribo sub-cultural”, sentia que tinha uma visão política do mundo que era partilhada por outras pessoas, muitas outras pessoas que conheci nas minhas viagens, pela comunidade na qual acabei por viver e com a qual lutei contra as ordens de despejo, organizando acções em conjunto, protestando contra o Governo. Sou desta maneira devido também à minha classe social de origem. Nunca me senti isolado nem acredito que vivamos num vazio.Musicalmente, o rótulo de música e de cultura folk parecia-me claramente o mais abrangente de todos, incluindo coisas tão diversas como os blues de Muddy Waters, o jazz de Louis Armstrong e Duke Ellington, a música klezmer de 1900-1930, o country de Hank Williams, o reggae de Bob Marley e o punk como o dos Clash.No que diz respeito à minha música e às histórias que eu canto: não acredito que as minhas canções sejam inconscientemente simples da mesma forma que podemos considerar alguma arte “nativa” de naif. Nas minhas canções tenho sempre tentado ser honesto e directo. Canto acerca da minha família e de pessoas que conheci para manter a sua memória viva. O mundo já é complicado que chegue, por isso eu procuro atingir a clareza e encontrar a minha própria verdade mantendo as coisas simples. De certa forma, é como se destilasse as coisas para as tornar mais fortes. Fazer canções é uma coisa complicada. Faço canções numa linguagem que a minha avó e a minha família possam entender e utilizo conscientemente um estilo conversacional nas canções. Procuro riqueza nessa linguagem “simples” mas trabalhada. **Z – Olha para as suas canções como fotografias de álbum, como um patchwork de experiências?** R – Por vezes sim, na medida em que elas são experiências concretas da minha vida sobre as quais eu canto. Elas enriquecem-me e eu celebro-as em canção; para além dessas histórias, esforço-me por recordar as cores, as formas e os odores, o tempo e os lugares, de certa maneira recapturá-los em canção. Quando canto sinto que estou a recapturar esses momentos para mim próprio, que estou a revivê-los e a transportar-me a mim e ao público numa viagem, como se para mim também fosse a primeira vez que os vivo. Isto acontece cada vez que canto.Muitas vezes surpreendo-me com a quantidade de experiências que já esqueci: elas estão algures na minha memória, são uma espécie de outros mundos, outras vidas e outras paisagens, momentos... Por vezes um momento íntimo que alguém me pode recordar quando reencontro essa pessoa, ou um despoletar repentino da memória durante uma conversa. Viajei muito sozinho e, sem testemunhas, sem alguém com quem viver esses momentos em conjunto, sem alguém que depois nos relembre aquilo por que passámos, acabamos por esquecer muito. Redescobrir uma antiga carta de amor ou uma fotografia velha e esquecida tirada num determinado lugar com determinada pessoa tem o mesmo efeito em todos nós, fazendo-nos sentir inundados de sentimentos de paixão e perda.Por outro lado, a verdade pode ser multi-dimensional. Se várias pessoas viverem um determinado momento em conjunto, depois recontarão a mesma história de formas muito diferentes, cada um utilizando as suas próprias palavras e apreciações, vendo e sentindo a experiência de forma diferenciada, dependendo do ponto de vista e do interesse de cada um.Isto também deve acontecer no jornalismo. Suponho que aquilo que eu digo nesta entrevista depende do tipo de questões que me colocam, bem como do tipo de questões que não me colocam... E, é claro, depende também de quanto é que eu me afasto da pergunta!Algumas canções são como fotografias ou fotogramas dispostos em sucessão. Eu canto canções de amor, algumas mais iradas que outras. Fiz parte de uma comunidade de gente revoltada e é possível que transporte essa revolta comigo e que cante com ela. Nas minhas viagens encontro muita gente sem posses e revoltada, e apercebo-me de que temos muito em comum; dei-me também conta de que, por vezes, as minhas canções podem falar por essas pessoas. Pelo menos é isso que as pessoas me dizem. Gosto de fazer canções que façam as pessoas sentirem-se mais fortes e orgulhosas acerca de si próprias, do seu trabalho e das suas vidas.As canções também podem ser como cartoons, uma caricatura, ou então negras e com muito impacte, como uma gravura de Goya ou uma litografia de Daumier. Tenho um par de canções assim, nas quais canto com a voz de outros: por exemplo, de um americano branco, cristão e fascista, um fundamentalista cristão, um maníaco da supremacia branca. **Z – Como é que vê o mundo actual?** R – Eu agora sou pai. Presentemente vivo na Escócia, mas em breve vou mudar-me para Orkney, numas ilhas na costa norte da Escócia. Dantes vivia na minha carrinha. Tentamos viajar o mais possível como família; gosto que viajemos juntos. No entanto, isso nem sempre é possível.O Solly tem 3 anos e tem feito tours comigo desde as 3 semanas de idade. Já tocou colheres comigo, em palco. Todos os miúdos gostam de copiar e imitar: ele imita-me e também imita o avô dele, pondo uma máscara para o pó, serrando, martelando, furando e brincando com madeira. O Finn, o nosso filho mais novo, tem 7 semanas, por isso precisa de muitas mudanças de fraldas e muitas canções de embalar. A vida parece ainda mais frágil do que anteriormente. Os miúdos são muito vulneráveis e, enquanto pai, sente-se isso mais intensamente. Sou responsável pela segurança deles. Enquanto que dantes eu corria mais riscos, o facto de agora ter filhos tornou-me mais cuidadoso, por exemplo a conduzir na estrada. Tento chegar inteiro a casa para estar com eles, para brincar com eles. Não quero perder o crescimento deles, e os miúdos crescem tão depressa... As mudanças são diárias, especialmente quando são assim tão novos. **Z – Já alguma vez se cansou de resistir a todos os opinion makers (companhias discográficas, televisão, rádio, imprensa) e ao grande público?** R – Tenho sobrevivido cantando teimosamente as minhas canções às pessoas, viajando com elas e aguentando-me fazendo diversos tipos de trabalhos. Tenho sobrevivido cantando e fazendo a minha música de forma independente, sem a TV, sem os media, sem a imprensa, etc. Sinto-me um privilegiado por fazer as coisas assim, sinto-me com sorte por ter um trabalho, por ter um trabalho que gosto sem ter de fazer compromissos e tenho sorte quando, por vezes, me pagam para eu o realizar. Na verdade, sinto que me pagam para guiar. Guio quilómetros e quilómetros para ir cantar algures. Sinto que me pagam para guiar e que canto as minhas canções de graça! Cantaria mesmo que não me pagassem. Tive de fazer muitas outras coisas para pagar a renda e poder viver... Ao contrário do que vocês dizem, não resisti à TV: há alguns anos atrás gravei para a TV e pude decidir acerca do modo como era filmado. Recusei-me a fazer playback, fingindo cantar como se fosse um boneco; pelo contrário, cantei e a gravação foi feita ao vivo. Nunca tive um agente para me meter na TV ou em outras coisas que eu não queria. Na verdade, nunca procurei um agente... Não recusaria a TV, mas gostaria de assegurar que as coisas eram gravadas da forma que eu quisesse e que a minha canção não era transformada. Fá-lo-ia não por ser um maníaco do controlo, mas por desejar ser verdadeiro para com a canção e para mim próprio. É evidente que quero que as pessoas ouçam as minhas canções, e se aparecer na TV tivesse como consequência ter mais público nos meus concertos, eu apareceria de bom grado. Apesar disso, acho que podia ser estranho estar a cantar para pessoas que não estou a ver, telespectadores a centenas de quilómetros de mim. Não quero tornar-me um prisioneiro da TV. Não quero ser um prisioneiro da fama. Depois de ter cantado as minhas canções, quero é desaparecer, misturar-me com a multidão e ir à minha vida. A TV é um mundo muito competitivo e acho que não me agradaria entrar nesse mundo, pois o preço a pagar parece-me demasiado elevado. Nesse mundo, aquilo que conta não é o que sabemos mas quem conhecemos. É uma coisa alienante. Sempre contei com a publicidade boca-a-boca para ter pessoas nos meus concertos, pessoas que depois até podem levar um dos meus álbuns. É certo que se trata de uma publicidade muito mais lenta, mas é a que conheço. Não gostaria de obrigar ninguém a ter de engolir a minha música. Ou seja, se alguém comprasse os meus seis álbuns todos de uma vez, teria de se haver com uma montanha de canções! **Z – O que é que pensa da nova cena folk britânica e norte-americana?** R – Parece-me que está a sobreviver bem, graças ao facto de muitos jovens (e alguns velhos) continuarem a utilizar determinados instrumentos e manterem a vontade de aprender melodias em sessões nos pubs, mantendo a tradição viva. Por vezes toco com eles, pego no meu trombone para passar o tempo e me divertir um bocado; com novos e velhos a tocar em conjunto, levam-se as melodias mais além. Os mais novos também querem fazer músicas novas, por isso as coisas estão a correr bastante bem. Parece que a música tradicional recebeu um sopro de vida com o filme “Irmão, onde estás?”. Ainda não vi o filme, mas tenho reparado que há músicos do rock e de outras áreas que se estão a virar para o country, utilizando mais instrumentos acústicos como banjos, bandolins e acordeões. A música torna-se mais orgânica, menos fria, agora que se afasta dos samples; os arranjos também se tornam menos intensos, de forma que as canções podem respirar melhor e há mais espaço para a voz surgir em primeiro plano. Gosto desta mudança, quer as pessoas estejam simplesmente a seguir uma moda ou não. Não sei nada acerca de revivalismo folk ou da “nova cena folk”: é uma música que esteve sempre aí, mesmo quando não estava na moda. Foi sempre tocada pelas pessoas que se sentavam umas com as outras numa cozinha ou numa sala e partilhavam canções e melodias.Para alguns promotores de concertos de música folk as coisas estão a complicar-se devido à falta de dinheiro e às restrições impostas pelo Governo às cantorias em pubs em Inglaterra, mas as pessoas continuam a cantar para si próprias. Hoje em dia, gravar e editar CD’s tornou-se mais acessível. As grandes companhias discográficas têm menos controlo sobre aquilo que nós escutamos, por isso as pessoas são capazes de escolher aquilo que querem cantar em vez de serem forçadas a tocar alguma fórmula musical que não lhes apetece. **Z – Com “Mouth to Mouth” começou a editar os seus próprios álbuns. Porquê?** R – Não tenho a certeza daquilo que querem dizer com “editar”. O que posso dizer é que sempre poupei do meu salário para produzir os meus próprios discos e pagar todas as despesas: o aluguer do estúdio, a gravação, os trabalhos de criação das capas dos álbuns... Aos músicos amigos paguei os valores correntes pela participação nas sessões de gravação. Dessa forma, só podia gravar quando tinha disponibilidade financeira para produzir um disco. A única coisa que dantes não fazia era a manufactura, o armazenamento e a distribuição dos meus CD’s. Quando vivia em squats (N. do T.: casas de ocupas) ou na minha carrinha não tinha hipótese nenhuma de armazenar os meus álbuns. Por isso é que a Cooking Vinyl licenciou a manufactura e a distribuição dos meus CD’s.Houve alguns erros básicos, alguns “soluços” profissionais que acabaram por se revelar frustrantes. Sem entrar em detalhes, posso dizer que a certa altura tinha de pagar para vender os meus próprios discos e nem sequer podia oferecer alguns porque isso me saía caríssimo... O dinheiro que fazia com as vendas de um álbum não chegava para a gasolina nem para a gravação do álbum seguinte... Por isso acabei por decidir fazer um esforço extra, poupar e pagar também a manufactura. Como era a Cooking Vinyl que detinha a licença sobre os meus discos, tive também de a reaver.“ Mouth to mouth”, outro CD duplo, é uma colecção de canções novas e muitas canções bem antigas que já tinha gravado há vários anos atrás, sem que as tivesse conseguido encaixar nos 5 álbuns anteriores. De certa forma eram uma espécie de “demos”, mas bem vistas as coisas todas as minhas gravações anteriores foram “demos”... Eu não tinha disponibilidade financeira para voltar a gravá-las, embora muitas vezes desejasse tê-lo feito. Acho que, muitas vezes, os meus desempenhos como cantor deixaram muito a desejar. Bom, de qualquer forma tinha essas gravações em meu poder; só não as tinha editado ou porque achava que elas não eram suficientemente boas ou porque não se encaixavam no espírito dos álbuns anteriores. Incluí também a gravação de uma canção a capella que tinha editado há alguns anos atrás, mas que agora estava indisponível. Provavelmente, o nome do álbum devia ser “Mouth to mouth - aproveitando as sobras”! Bom, na verdade ainda tenho canções que não consegui incluir em “Mouth to Mouth”... **Z – Está a trabalhar nalgum projecto ou álbum novo?** R – Tenho muitas canções e melodias, algumas das quais já gravei. No entanto, ainda não estou a pensar no próximo álbum. Não tenho nada planeado como álbum. Encontro algumas canções, algumas ideias antigas, experiências recentes, diferentes tipos de histórias e canções... Tenho pensado nalguns arranjos, mas um punhado de canções pode não fazer um álbum.Fiz uma canção intitulada “Directions Song”, que não é mais do que uma canção onde indico o caminho para chegar a minha casa. Fiz a canção só pelo gozo, para encorajar amigos a guiarem 8 horas para nos virem visitar aqui em cima, na extremidade da Escócia. Na canção explico todas as curvas do caminho, da auto-estrada às estradas sinuosas, passando pelos rios, pontes e aldeias atravessadas pelo caminho. No Natal, enviei a cassete a alguns amigos em vez de lhes mandar o habitual postal de Natal e Ano Novo... A Aimee diz que, se eu lançar essa canção, corremos o risco de apanhar com uma série de visitantes indesejados, por isso sou capaz de esperar algum tempo até nos mudarmos daqui...Pode ser que também venha a incluir uma canção chamada “No blood for oil”, que é sobre a guerra no Iraque e a Iraquenofobia do George Bush (como eu dizia antes de os nossos exércitos terem invadido o país). Nesta guerra estão a ser utilizados imensos critérios diferenciados: o Governo corrupto dos EUA actua como polícia do mundo, mas os EUA financiaram o Saddam Hussein durante anos a fio, tal como financiaram os Tacomponentsã, Noriega e os Contras, etc. A CIA (Comité para a Intervenção Arbitrária) continuou a pagar ao Saddam numa altura em que já sabia do genocídio de iraquianos e curdos. Só quando o Saddam ameaçou os interesses petrolíferos americanos e se recusou a fazer “negócio” com eles é que “decidiram” que ele era um assassino e um ditador, só aí é que o processo de demonização se iniciou. Anteriormente, quando os americanos o tinham sob controlo, ele matava com a bênção americana. Os EUA têm o Terceiro Mundo no seu próprio quintal. Ao mesmo tempo que procede a cortes nos gastos com a educação e a assistência social, o Bush gasta milhões de dólares numa guerra na qual se sacrificam as vidas de iraquianos e as vidas de soldados americanos da classe trabalhadora. Os contribuintes americanos estão a financiar a Exxon e a Texaco, as grandes companhias petrolíferas e os ladrões de colarinho branco (como os da Enron).A CIA tem actuado como um grupo terrorista há já muitos anos. No Chile, a 11 de Setembro de 1973, quando Salvador Allende, o presidente democraticamente eleito, foi bombardeado e assassinado no seu gabinete, a CIA deu uma ajuda. Entre outras coisas, Salvador Allende estava a cumprir as suas promessas eleitorais relativamente à nacionalização do petróleo e dos minérios, e os EUA não gostaram disso. Nessa altura, a democracia chilena ia contra os interesses das suas empresas. Foi aí que os EUA ajudaram a instalar no poder o General Pinochet, o torturador e assassino fascista que era amigo da nossa Primeiro-Ministro Margaret Thatcher, que lhe vendeu armas. A senhora Thatcher também vendeu armas ao senhor Galtieri, da Argentina, armas essas que, ironicamente, foram depois utilizadas contra soldados britânicos na guerra das Malvinas...O Governo dos EUA utilizou armas químicas no Vietname, armas do tipo que agora nos dizem que Saddam Hussein tem escondidas. O Governo dos EUA utilizou napalm e agent orange. Depois, quando os seus jovens heróicos soldados regressaram feridos e mutilados do Vietname, cuspiram-lhes e consideraram-nos inimigos da pátria quando eles protestaram contra a guerra e o Governo de Nixon. As memórias são muito curtas; é difícil acreditar! As contradições e ironias sucedem-se e o processo é extremamente doloroso! Por isso é que tenho andado a cantar uma canção acerca disto, que pode entrar no próximo CD. Algumas pessoas já me pediram para a gravar. Bom, mas já falei demais acerca deste assunto. Vou ficar por aqui...Quanto às outras coisas, tenho muitas outras canções e muitas outras histórias, entre elas uma canção de embalar que compus para o Solly quando ele era muito pequenino e eu o embalava nos meus braços, adormecendo-o enquanto eu cantava e ele arrotava depois de ter mamado... **Z – Será que a música devia fazer parte do Serviço Nacional de Saúde, como uma vez disse numa entrevista?** R – Quando disse isso estava meio a brincar, embora também falasse a sério. Estava a falar a sério quando disse que a música nos pode fazer sentir bem, que tem poderes curativos, quer nós a escutemos, cantemos ou façamos música. A música é boa para a “alma” e a mim, pessoalmente, também serviu para me afastar de complicações... É bom quando as pessoas encontram formas de se expressarem, de expressarem os seus sentimentos, de tal forma que a música acaba por ser uma boa terapia, quer estejam a cantar com outras pessoas, quer se juntem em festivais: a interacção é uma coisa saudável.Para além disso, a minha afirmação também continha uma observação de carácter económico. O Estado de Bem-estar que temos aqui na Grã-Bretanha nunca nos foi dado de graça: os nossos avós tiveram de lutar por ele e, da maneira que as coisas estão, temos de continuar a lutar para o manter. Os enfermeiros deviam ser mais bem pagos, precisamos de mais hospitais, de menos hierarquias, de hospitais maiores e não de mais armas e mísseis. Penso que com a música se passa o mesmo: é preciso mais financiamento para a música nas escolas e o ideal seria que as pessoas pudessem ouvir música de graça... Que a música fosse financiada tal como o sistema de saúde devia ser, e que fizesse parte do Sistema Nacional de Saúde...Ouvi em tempos a história de um homem cujo médico lhe tinha dito que ele tinha um cancro incurável do estômago, e que iria morrer. O homem encomendou e viu uma série de filmes de comédia e fartou-se de rir. De tanto rir, curou-se e não morreu. Julgo que o riso e o choro são dois lados da mesma moeda: já está provado que se reprimirmos as nossas emoções ficamos doentes. Enquanto seres humanos precisamos de chorar, de fazer o luto, de exprimir os nossos sentimentos de tristeza, e precisamos também de exprimir a nossa alegria. Não expressamos essas coisas na música? Claro que sim! A música soul, do Otis Redding à Mahalia Jackson, quem quer que seja... Espero não estar a soar como um guru New Age pretensioso nem como um fanático religioso, mas acredito que a música, o cantar e o escutar têm potencial curativo.Em tempos fiz uma canção acerca do divórcio mas sob o ponto de vista de uma criança que vê os seus pais a separarem-se. Depois disso houve jovens que vieram ter comigo dizer-me que se sentiam muito melhor depois de terem ouvido os seus sentimentos expressos nas palavras de uma canção que eu tinha acabado de cantar. Diziam-me que já não se sentiam tão isolados, nem tão sozinhos com as suas dores ou tão confusos relativamente aos sentimentos de lealdade. Também houve pais que vieram falar comigo.Já houve pessoas que vieram ter comigo muito emocionadas depois de eu ter cantado uma canção chamada “The joy of living”. Tinham perdido recentemente um amigo, o companheiro ou o avô, e vieram ter comigo dizendo que estavam mesmo a precisar de ouvir aquela canção, uma canção sobre a velhice e o abandono desta vida, sobre a preparação para a morte e o adeus. Precisamos dessas canções: elas alimentam-nos.Por vezes, vejo pessoas “velhas” a tocarem em conjunto com pessoas “novas” em sessões informais. Isso parece-me um acontecimento particularmente saudável nesta época da Generation Gap e dos ataques violentos a velhinhos. Tenho a certeza que, para miúdos que habitualmente tocam em bandas punk nas quais gritam a sua raiva e a sua frustração, estas são experiências catárticas. Talvez não seja ao gosto de todos, mas essa primeira experiência, esse esforço inicial, tornou-os interessados em fazer música e em aprender a tocar guitarra, em fazer canções e em apreciar outros tipos de música.